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julho 30, 2019

Bijagós 9 - momentos mágicos: Inhodá em Canhabaque

Cogumelo? Não. Apenas uma termiteira...

Nas ilhas, há duas autoridades: os Bijagós (que são donos das terras, que podem vender ou alugar, em geral, a estrangeiros) e o estado guineense (que recebe impostos – entre outros, uma espécie de IMI). As coisas nem sempre correm bem, mas os Bijagós são duros de roer.
Dito isto, como a Solange (do hotel "Ponta Anchaca" em Rubane) queria construir um acampamento na Ilha de Canhabaque para apoio aos turistas que participam em expedições de pesca, teve de apresentar o projeto à comunidade da tabanca de Inhodá. Embora haja outras tabancas (parece que são 14), o local do acampamento (Ponta Inhodá – solo sagrado) pertence à tabanca de Inhodá.
A Ilha de Canhabaque (também conhecida como Roxa), a par da distante Ilha Caravela, tem o título da mais bela, com vegetação luxuriante e praias de tirar o fôlego, alternadas com formações rochosas. Foi a primeira ilha do Arquipélago a ser habitada (tendo nos dias de hoje cerca de 2500 habitantes) e é considerada a mais tradicional nos costumes e modo de vida, com uma organização social matrilinear, em que as mulheres têm uma forte predominância na gestão e na manutenção do equilíbrio das tabancas.
Depois de uma noite muito mal dormida, com cabeça a andar à roda, pela mistura de bebidas que imprudentemente fiz nos aperitivos e jantar da noite anterior, saí do bangalô e cruzei-me com a Solange, que andava a apanhar cogumelos selvagens (enormes e de sabor muito delicado), e me interpelou (“Buon dia, Antôniô! Quêrês irr à Canhabaque?”). Com a pouca energia que tinha, respondi que sim. “Vine!”, rematou. O verbo vir é tramado…
Pouco deois, felizmente, veio fora o jantar não digerido. Embora continuasse a sentir-me como uma esfregona em de fim de vida, foi um alívio enorme que me permitiu viver a aventura que passo a relatar.
À hora estabelecida, saímos de Rubane (a Solange, a Wal e os 12 estagiários da tabanca que íamos visitar que estão a trabalhar no “Ponta Anchaca”), com o Kabi e o Agostinho aos comandos do barco.
Depois de cerca de 40 minutos de viagem, com a perícia do Kabi, entrámos no mangal, percorrendo estreitos canais até onde a navegabilidade permitiu.

Descalços, saltámos para a água. Mal entrámos no pântano de água fétida, fomos atacados pela mosquitagem voraz e por uma espécie de moscardos. Um exército alado que parecia estar à nossa espera, sobretudo dos brancos…

Entrámos num caminho da floresta, próprio de uma história de encantar: trepadeiras, frutos silvestres, palmeiras, cajueiros, mangueiras (disseram-me que há uma espécie selvagem). 
No alto das árvores, como uma orquestra, as aves não se fizeram rogadas a dar corpo à banda sonora daquele cenário de filme.
Seguimos em fila indiana durante quase uma hora e, embora tropeçasse aqui e ali, fiz de tripas coração com o ânimo em alta e a ajuda do Agostinho que fez questão de carregar a minha bagagem.

Mesmo antes de chegarmos ao destino, como se estivéssemos numa história de Asterix, duas árvores enormes deixaram-me sem palavras. Uma espécie de porta de entrada para a tabanca. Não surpreende que Canhabaque seja considerada uma ilha encantada para os animistas, havendo mesmo a crença de que as árvores falam...

Na tabanca, edificada estrategicamente numa clareira ladeada de centenárias árvores sagradas, fomos recebidos com entusiasmo e seguidos e interpelados pelas muitas crianças da comunidade. Tal como na tabanca que visitámos em Bubaque, todos conhecem a Solange.
As pessoas importantes são enterradas na tabanca.

Num ritmo pastoso, que aqui o tempo tem todo o tempo do mundo, sobretudo se houver comida para todos, o cenário da assembleia foi sendo montado: cadeiras para “homens grandes” (ou seja, mais idosos, e a quem cabe o papel de ouvir as propostas, pedir esclarecimentos e, finalmente, tomar uma decisão, para a qual não há recurso), para nós e para os homens ainda não “grandes”, mas na casa dos 40-50 anos. Os restantes participantes  tiveram de trazer o seu próprio banco ou sentar-se no chão.
Finalmente, já com toda a tabanca reunida (incluindo as crianças, talvez um pouco mais de 100 pessoas), chegaram os “homens grandes” e, depois de uma sessão de cumprimentos, a assembleia começou.
Num silêncio absoluto, a Solange apresentou o seu pedido num circuito comunicativo espantoso: ela falava em francês (nalguns momentos, em português, com a minha ajuda), o Nautan (funcionário do hotel) traduzia para crioulo e o Castro (estagiário no hotel e nascido e criado na tabanca onde estávamos) passava para bijagó. Os “homens grandes” e os que referi na casa dos 40-50 anos trocavam argumentos em voz bem alta para que todos ouvissem e iam apresentando contrapropostas ou pedidos de esclarecimento, invertendo-se a ordem das línguas: bijagó-crioulo-francês.
Depois de mais de uma hora de troca de argumentos, todos se viraram para o homem mais velho da tabanca (até aí em silêncio e de olhos semicerrados). 
Fez-se silêncio... 
Passados alguns segundos, fez um breve discurso. Gritou a última palavra e deu um murro no banco em que estava sentado como se estivesse muito zangado. Não sei reproduzir a palavra, mas, assim que a pronunciou, toda a aldeia riu e bateu palmas. O Castro explicou-me que ele disse que estava farto de ser sempre ele a tomar as decisões e que já era tempo de eles próprios encontrarem o caminho certo. A tal palavra acompanhada do murro no banco era “merda!”
Depois de nova discussão com vários intervenientes, foi proposta ao decano uma decisão, tendo sido aprovada. O acampamento podia ser construído, usando como mão de obra os jovens da aldeia, com entrega à comunidade de um determinado número de sacos de arroz (base da alimentação nas ilhas e em toda a Guiné). No entanto, a construção (com caráter provisório, ou seja, de madeira, por ser um espaço sagrado) não poderia começar de imediato como solicitado, mas apenas daí a duas semanas para permitir que a comunidade de pescadores da Guiné Conacri lá instalada pudesse transferir-se para outra parte da ilha, também numa baía, que lhes iria ser cedida.
 Depois da maratona, o descanso dos tradutores...

Os "homens grandes". À esquerda, o tal da m...

O Agostinho Quintino (um "homem grande" cheio de sabedoria e sentido de humor) acompanhado por um possível sucessor. Pose, o miúdo já tem!

Quando a assembleia foi encerrada (sendo a ata a memória de todos), despedimo-nos, os “homens grandes” retiraram-se e iniciámos o regresso até ao barco por um caminho diferente. 

Mesmo ensonado, não deixei de me encantar com as pequenas coisas (como aquela termiteira em forma de cogumelo no início do post) e de começar a organizar a sequência dos acontecimentos e as emoções para, com as notas que fui registando num minibloco, escrever este relato.
Após 45 minutos de caminhada, chegámos à praia. 
Adeus, Canhabaque...

Mal entrámos no barco, caiu uma chuvada tão forte que nem tempo houve para vestir os impermeáveis. Com a maré favorável, em cerca de 30 minutos, pusemo-nos em Rubane.
Depois de uma refeição ligeira, caí na cama e dormi a tarde toda, pois fui dispensado das aulas.
Ao jantar, já estava recuperado e com apetite. Mas bebida, só mesmo água!

Abraço.
ProfAP

Nota final: A população de Inhodá (como de muitas outras tabancas) vive em condições deploráveis: sem qualquer apoio de saúde, as pessoas passam suplícios com dores de cabeça ou de dentes, dores incapacitantes de costas, malária, podendo qualquer pequena ferida passar rapidamente a uma infeção grave. Se juntarmos o alcoolismo (aguardente de cana, vinha da palma, vinho de caju), potenciado pelas cerimónias, compreende-se que a morte esteja sempre presente. Morrem muitas crianças, mas não é raro encontrar jovens na casa dos 30 anos já sem um dos pais ou sem o cônjuge.

julho 29, 2019

Bijagós 8 - momentos mágicos: pessoas 1

Pela floresta, a caminho da Tabanca...

Quando a Solange me perguntou se queria acompanhá-la na ida a uma cerimónia de consagração do novo régulo da tabanca de enen, fiquei nas nuvens. É algo reservado e acontece apenas quando o régulo em funções morre e é escolhido outro pela comunidade. Por ser um momento especial, as celebrações prolongam-se no tempo com cerimónias (onde não faltam a aguardente de cana e o vinho da palma) e danças rituais.
No dia D, saímos de barco de Rubane, chegando cerca de 15 minutos depois ao porto da ilha de Bubaque. 

Aí, iniciámos uma caminhada de quase uma hora pela floresta em direção ao interior da ilha. Enquanto caminhávamos, foram-se juntando a nós crianças aparecidas do nada. Cercavam-nos, diziam coisas que não entendia e revezavam-se para nos darem a mão.
Por fim, chegámos à aldeia e a receção foi apoteótica: crianças, muitas crianças, danças, abraços e beijos que recebi dos homens mais velhos. Como já conhecem a Solange, o interesse centrou-se em mim e, vezes sem conta, lá fui contando quem era e o que estava a fazer nos Bijagós. Alguns, malandramente, queriam saber se eu e a Solange “coisa e tal”. 

Fomos equipados com os trajes tradicionais e fui convidado a entrar com a Solange na casa das “mulheres grandes” (as mulheres mais velhas), num gesto de apreço, pois normalmente só a ela seria permitida a entrada. Entrámos na palhota espaçosa, numa quase escuridão. Sentámo-nos no chão e só então me apercebi que havia no espaço várias mulheres. A que estava ao meu lado entrou numa espécie de transe e começou a murmurar-me coisas ininteligíveis ao ouvido. Divertida, a Solange disse-me ao outro ouvido: “Elá gostá dê ti!” Já que estava ali para uma experiência única, deixei-me levar pelo ambiente. Coloquei a mão dela entre as minhas e, à medida que ela ia dizendo coisas, olhava-lhe para o rosto difuso na penumbra e ia acenando afirmativamente com a cabeça, sorrindo-lhe, o que parece ter-lhe agradado.  Seguiu-se, ainda dentro da palhota, a discussão das oferendas (dinheiro e/ou aguardente de cana) para a realização de uma cerimónia de proteção dos espíritos maus que vagueiam na floresta.
Já no terreiro, chegou o momento mais temido: a participação na dança. Uma jovem agarrou-me o braço e percebi que não tinha escapatória. Como sou um pé de chumbo, lembrei-me do tática da Solange: bater o pé direito, levantar o braço esquerdo e, a seguir, bater o pé esquerdo e levantar o braço direito e abanar o rabo. De preferência, fazendo isso tudo ao mesmo tempo. 
A Solange com a saia tradicional.

Garanto-vos que é mais fácil de dizer do que pôr em prática. Na minha descoordenação aflitiva, lá fiz o que pude. 
À esquerda, a casa da mulheres grandes.


O espetáculo que deve ter sido bom, pois as crianças e as mulheres riram que só visto e vários homens vieram abraçar-me, encaixando o pescoço no meu, e, enquanto me beijavam, diziam com ar muito festivo "António, António, António!". O afeto e a aguardente de cana (mais alcoólica que a nossa aguardente vínica) a ganharem asas. Inesquecível!
Foi uma deceção para todos quando o Solange disse que tínhamos de regressar. A despedida traduziu-se em prolongadas manifestações de carinho: agarrar a mão,  acariciar, abraçar, beijar.
 Na despedida, fui escoltado numa parte do caminho com mais dança e batuque. Uma festa!

Regressámos ao porto de Bubaque num atrelado de motorizada previamente reservado.
Já no atrelado, com uma peça de um artista da tabanca feita da madeira de poilão (também chamada sumaúma), uma árvore sagrada para os Bijagós.


No regresso a Rubane, quatro dos seis cães do hotel (de uma raça local) aguardavam-nos com lamentos e uivos. Só não estavam a Princesse (que é cega) e a Chita (obesa).

Uma experiência única que vou guardar no cantinho da memória reservado aos "momentos mágicos".
Viva o novo régulo!
Abraço.
AP
P.s.: Tentarei partilhar em breve outro momento especial: a visita à tabanca de Inhodá na ilha de Canhabaque.

julho 18, 2019

Bijagós 7: O quadro mágico!



Muito se pode fazer com muito pouco.
Depois de ter procurado várias possibilidades para encontrar um quadro que se pudesse dobrar (em papel ou plástico), as hipóteses encontradas eram ou difíceis de transportar ou caras para os fundos disponíveis para a compra do quadro e dois marcadores (15€). Afinal, tudo se resolveu mesmo em cima da partida:
1. Depois de ter vasculhado todas as lojas chinesas da minha zona, encontrei sétima e última o que queria: um plástico oleado daqueles de forrar as gavetas por apenas 2€50. Agrafei uma espécie de bainha em cima e em baixo e à chegada foi só encontrar duas tabuinhas à medida: uma para pôr um cordel para pendurar e outra para fazer peso em baixo. Um balde com água e um pano eram o toque que faltava nesta tecnologia do CCR (caçar com rato).
2. Quanto aos marcadores, através da Cláudia Manata, recebi-os do Sr. Fernando e da D. Céu, proprietários da Paliarco Papelaria, Livraria, Arte e Comércio (S. Marcos – Cacém). Marcadores, mas também muitos outros materiais como borrachas, cadernos e capas, tudo entregue aos jovens estagiários, para que possam ir fazendo um diário para lerem numa sessão plenária no final do mês.
Abraço.
AP

Bijagós 6 - momentos mágicos: fauna 1

Parece perto, mas foi fotografado a uma boa distância com zoom.


Depois do almoço, quando regresso ao bungalô para ler e dormitar um pouco, este amigo imponente está sempre pousado no alto da mesma árvore a espreitar-me. Quando falo com ele em português (“Olá, Jonas, abutre lindo!”), estica o pescoço na minha direção com ar intrigado. Deve ser por eu não lhe falar na língua bijagó… 
A propósito, abutre em bijagó diz-se "cangúlú".
Abraço.
AP

julho 13, 2019

Bijagós 5 - momentos mágicos: flora 1

Foto tirada hoje antes do pequeno-almoço...


O embondeiro (aqui conhecido como cabaceira, embora receba outras designações no espaço da língua portuguesa: adansónia, baobá, calabaceira,  melambeira, micondó) dá uma flor magnífica. Diz-se que dura apenas uma noite, abrindo ao pôr do sol.
Durante a noite, os morcegos vão de de flor em flor e sugam o néctar, garantindo a polinização.

Abraço.
AP

julho 12, 2019

Bijagós 4 - À pesca... da língua portuguesa e não só!

Quem havia de dizer...

Há dias, fui com a equipa de pesca do hotel que costuma acompanhar os turistas nas expedições. Objetivo: treinar o vocabulário e as estruturas, sobretudo os verbos, para dar instruções nos procedimentos a seguir. Acharam que eu deveria assumir o papel de professor-pescador para tornar as interações mais realistas. Aceitei, embora a minha única experiência de pesca esteja longe de ser gloriosa. Calculo que queiram saber porquê... Tá bem, não é preciso insistir mais, eu conto.
Há uns bons 20 anos, numa manhã enevoada (que me disseram excelente para uma boa pescaria) de outubro ou novembro, munido de uma cana de pesca, fio, anzol e uma chumbada (tudo comprado no chinês) e isco comprado numa loja de pesca, instalei-me numa das praias de Troia, junto à cidade de Setúbal. A "minha" Cecília sentou-se num banquinho e, embrulhada na toalha, mergulhou na leitura de um livro. Lancei a linha, esperei um bocado... e nada. Voltei a lançá-la, uma e outra vez, e sempre nada. Um pouco desiludido com a situação (até tinha prometido que íamos ter peixe ao jantar pescado por mim...), pousei a cana e fui andar um pouco junto ao mar. Então, apercebi-me de que, a poucos metros de distância, estava um senhor a pescar. Quando passei junto ao baldinho que tinha na areia, vi que tinha vários peixes. Concluí que o sítio que tinha escolhido era bom, logo, o problema estava na técnica. Voltei a pegar na cana e pus-me a observá-lo. E percebi que ele ganhava mais balanço do que eu no momento de lançar a linha. Juntei uma segunda chumbada e, ganhando todo o balanço que consegui, atirei a linha que, potenciada pela chumbada extra, partiu velozmente para o mar. Vá lá saber-se porquê, quando ficou todo esticado, o fio partiu-se e continuou em grande velocidade em direção à linha do horizonte com o anzol, o isco e as duas chumbadas. Nunca mais os vi.
Desgostoso, disse à Cecília: "Acabou-se a pesca!" Intrigada, respondeu: "Então, porquê?" Contrariado, expliquei-lhe o sucedido. Riu-se que nem uma perdida e, ainda hoje, quando recordamos a situação, se ri com gosto.
Voltando ao papel de professor-pescador, na primeira paragem, lançámos uma linha que estava enrolada numa tábua para capturar peixes não muito grandes. Todos apanharam peixes... exceto eu. O isco ficou intacto, embora eu tivesse seguido as instruções à risca. Parecia macumba...
Retirámos as linhas da água e partimos para a zona onde se apanham os peixes maiores. Embora eu não o quisesse, destinaram-me uma cana sofisticada. Passado pouco tempo, esticões e mais esticões, como se estivesse um touro enfurecido agarrado ao anzol. Seguindo as indicações do Agostinho, encostei a ponta da cana à virilha (onde ainda tenho uma nódoa negra) e, com incentivos de todos, dei à manivela como se não houvesse amanhã. Quando a bicha chegou à superfície, puxaram-na para dentro do barco e abreviaram-lhe rapidamente o sofrimento. É bastante resistente e disseram-me que, mesmo fora da água, morde que se farta.
Continuámos a pescar, mas não houve mais capturas.
À chegada, a Solange fez questão de que o momento ficasse registado para posteridade. Não me reconverti à atividade piscatória, mas foi uma boa terapia para o trauma de Troia.

Abraço (cheio de picadas das formigas de asa que, em época de acasalamento, andam com os nervos à flor da pele)!
AP

julho 10, 2019

Bijagós 3 - Em ação!



Aula desta tarde com o grupo que trabalha na floresta (interrompida pela chuva forte que está a cair há quatro horas)...

Após a chegada, e depois de uma conversa com a Solange, dona do Ponta Anchaca (onde irei viver até ao final do mês), percebi que a planificação que trazia e as atividades previamente preparadas, com raras exceções, não eram adequadas.
Por e-mail, foi-me dito que a eu decidia “sur place” o que fazer e como fazê-lo. Resumindo e concluindo, qual o meu trabalho?
1. Falar com todos os funcionários, guineenses e senegaleses (88+14 estagiários vindos da ilha de Canhabaque) em português e interagirmos em todas as situações (quando nos encontramos e nos saudamos, quando saio com os que vão às compras à ilha de Bubaque, quando vão à pesca e eu vou com eles, enquanto trabalham, nomeadamente as camareiras, etc.).
O mesmo se aplica à “patronne”, nos momentos que partilhamos diariamente: ao almoço, que tomamos juntos, e quando vamos passear com os cães. Todos têm de falar em português, devendo eu corrigir-lhe os erros que interferem na comunicação.
2. Uma vez por dia, há uma sistematização (no escritório do hotel) de aspetos que correspondam às dificuldades detetadas. Para não interferir com o trabalho de cada um com o facto de o crioulo ser aqui a língua “sagrada”, a presença nas sessões teóricas não é obrigatória. Logo, a minha aluna regular é a Solange. Alguns funcionários vêm espreitar (pois acham divertido eu ser o professor da patroa), assistem uns minutos e voltam para os seus afazeres.
Nos próximos dias, vou acompanhar o Omar (excelente cozinheiro português) para que possa aprender os atos de fala mais comuns nas interações, visando a comunicação em português com os clientes.
 A Solange é uma aluna assídua, aplicada e aprende depressa. E faz sempre os trabalhos de casa!
Conclusão: trabalho “duro” o meu, mas alguém tinha de o fazer…
Abraço.
AP
Nota: Esta missão resultou de um desafio que me foi lançado pelo representante do AICEP em Bissau (Tiago Bastos). Esteve em banho-maria desde 2016, concretizando-se agora.

Bijagós 2 - Viagem Bissau-Rubane


Agendado para 5 de julho ao fim da manhã, o trajeto Bissau-Rubane (ilha sagrada dos Bijagós) foi adiada para o dia seguinte, devido a uma forte tempestade que tornava a navegação perigosa no arquipélago.
No dia 6 às 9h00, entrei no barco e vestiram-se um colete salva-vidas e um casaco supostamente antichuva. 

Acondicionado estrategicamente (para não provocar desequilíbrios de peso) entre bidões de gasolina, paletes de vinho tinto francês e água Castello, partimos do porto da alfândega de Bissau.
Esperava uma viagem tranquila, sem sobressaltos, mas… puro engano! Já em mar aberto, a forte ondulação erguia no ar a parte dianteira do pequeno barco de fibra de vidro que se abatia com estrondo sobre o mar, como se uma parede se tratasse, com efeitos devastadores para as minhas cruzes. Quando o barco batia na água, o meu rabo saltava e voltava a cair, com determinação, no assento improvisado. Parecia que, a qualquer momento, o barco ia ceder e deixar-se engolir por aquela imensa e revolta massa plúmbea. 

Pensei para mim: “Epá, se tiver de ir desta para melhor, que seja no regresso!”
Mais ou menos a meio da viagem, surgiu no horizonte uma massa negra e compacta que parecia uma montanha. Disseram-me eram nuvens de chuva que estavam à nossa espera.

Enquanto pensava naquela personificação tão expressiva do Agostinho, começou a chover. Parecia uma coisa banal, mas, uns minutos depois, veio uma chuva tão forte e cerrada que picava na pele. Só tive tempo para guardar a máquina fotográfica e o telemóvel contra o peito, debaixo do salva-vidas, enfiar a cabeça no capuz e tapar a cara. Resignado, fiquei ali, quieto como um monge em oração. Esforços vãos, pois, animada de uma vontade perversa, a água entrava por todo o lado. Fiquei todo ensopado, incluindo naquelas partes que não preciso de nomear. Uma lástima! 
O barco teve de parar quando a visibilidade ficou reduzida a quase nada.
Uns minutos depois, seguimos viagem.
Pouco depois, a massa negra desfez-se e abriu-se um arco como que a dar-nos passagem...

Depois de duas horas de provação, chegámos (finalmente!) à joia do arquipélago. 

Mal saí do barco e pus os pés na água tépida, avistei a figura franzina da Solange a caminhar na praia na minha direção. Com um grande sorriso, atirou-me: "Alors, Antôniô, ça a été dur?" Respondi-lhe, fazendo das tripas coração: "Ah non, pas de problème." Concluiu: "Vous êtes un homme courageux!" Pois sou! :)
Abraço.
AP

julho 07, 2019

Bijagós 1 – Chegada a Bissau e aventura num táxi...

Em busca do fio perdido...

4-7-19: Com um atraso de uma hora, o voo da TAP partiu para Bissau ao fim da tarde. Depois de uma viagem tranquila e uma refeição quente, a substituir a habitual sandes fria e sem sabor, aterrámos em Bissau pela noite dentro. 
À saída do aeroporto, o volume das duas malas e um saco a rebentar pelas costuras deve ter chamado a atenção dos controladores, pois mandarem-me pôr a bagagem em cima de uma mesa para ser revistada. Chateado até ao tutano, abri o cadeado da primeira mala. Assim que abriram o fecho, caíram cadernos, lápis e esferográficas em todas as direções. Quando disse que era professor voluntário e que aquilo eram materiais que tinha trazido para os alunos, um dos verificadores olhou-me com ar de aprovação, sorriu e, depois de me ajudar a apanhar o que caíra da mala, disse-me que não precisava de mostrar mais nada e que podia seguir.
Depois de sair do aeroporto, seguiu-se a odisseia de descobrir onde estava quem me ia buscar, uma vez que tinha feito a reserva do transfer ao hotel onde iria pernoitar. Enviei na véspera da viagem um e-mail a perguntar como nos iríamos reconhecer. Resposta obtida: “Ok, Sr. António”. Depois de 10 minutos de busca infrutífera, como não tinha número guineense, telefonei para o hotel com um cartão que trazia de Portugal, quase esgotando o saldo. Disseram-me que andavam à minha procura e não me encontravam. Descrevi-me e disse que ia estar de braço no ar com um saco amarelo na mão. O efeito obtido foi ser abordado por múltiplos taxistas. Quando lhes perguntava se eram do hotel para onde eu ia todos diziam que sim.
Já quase desesperava, sempre com o braço no ar, com o saco amarelo bem visível, quando ouvi uma voz sumida: “Sr. António...”. Era a pessoa que procurava, mas as confusões mal tinham começado. Como já não havia lugar no mini-bus do hotel, indicou-me um táxi que me transportaria. Poucos são os táxis bem conservados em Bissau, mas o interior daquele em que acabara de entrar deixou-me a impressão de ter sido vítima de um bombardeamento. A porta, esburacada por dentro, quase não fechava e havia fios à solta por todo o lado, principalmente no lado esquerdo do volante.
O jovem condutor, cego de um olho e com uma tosse cavernosa que não indiciava nada de bom, sorriu, cumprimentou-me e disse várias coisas em crioulo que não entendi.
Pouco tempo depois de termos iniciado a viagem, parámos e o jovem apontou para o meu telemóvel, dizendo repetidamente “luce”, “luce”. Percebi que queria que eu ligasse a lanterna. Com dois alicates, esteve durante longos minutos a tentar tirar um fio de dentro de um tubo e a torcê-lo. Perante a dificuldade da tarefa, ia dizendo coisas em voz baixa.
Prosseguimos a viagem, mas, quando nos aproximávamos do início do mercado do Bandim, voltou a parar dizendo “Polícia, no bene”, o que me deixou intrigado e já um pouco preocupado. Voltou a usar os alicates da forma já descrita. Quando saiu do carro e foi espreitar a frente do carro, entendi que o sistema elétrico estava avariado e que temia ser multado.
Prosseguimos viagem sem luz nos faróis, orientados pelas luzes traseiras de outros veículos e por um ou outro poste de iluminação pública. Quando não havia nem uma coisa nem outra, era um “Seja o que Deus (ou Alá) quiser!”
Depois de uma viagem de perto de uma hora (em condições normais, seria menos de meia hora), chegámos ao destino. Desventuras terminadas? Nada disso! O jovem queria que lhe pagasse 10€ pela viagem. Embora lhe tenha explicado que era ao hotel que tinha de pagar e não a ele, insistia em receber e, do que me dizia em crioulo, entendi os argumentos de que tinha família para sustentar e que o hotel não lhe ia pagar. Enquanto falava, segurava-me os braços e olhava para mim com ar suplicante. Para desbloquear a situação, disse que pagava 5€. Contrariado, acabou por aceitar, visivelmente com ar de quem se sentia enganado por mim.
Entrei no hotel e descubram lá o que aconteceu? Isso mesmo, paguei o transfer pela segunda vez…
Abraço.