Cogumelo? Não. Apenas uma termiteira...
Nas ilhas, há duas autoridades:
os Bijagós (que são donos das terras, que
podem vender ou alugar, em geral, a estrangeiros) e o estado guineense (que
recebe impostos – entre outros, uma espécie de IMI). As coisas nem sempre correm bem, mas os
Bijagós são duros de roer.
Dito isto, como a Solange (do hotel "Ponta Anchaca" em Rubane) queria
construir um acampamento na Ilha de Canhabaque para apoio aos turistas que participam em
expedições de pesca, teve de apresentar o projeto à comunidade da tabanca de
Inhodá. Embora haja outras tabancas (parece que são 14), o local do
acampamento (Ponta Inhodá – solo sagrado) pertence à tabanca de Inhodá.
A Ilha de Canhabaque (também conhecida como
Roxa), a par da distante Ilha Caravela, tem o título da mais bela, com vegetação
luxuriante e praias de tirar o fôlego, alternadas com formações rochosas. Foi a
primeira ilha do Arquipélago a ser habitada (tendo nos dias de hoje cerca de 2500 habitantes)
e é considerada a mais tradicional nos costumes e modo de vida, com uma organização
social matrilinear, em que as mulheres têm uma forte predominância na gestão e
na manutenção do equilíbrio das tabancas.
Depois de uma noite muito mal dormida,
com cabeça a andar à roda, pela mistura de bebidas que imprudentemente fiz nos
aperitivos e jantar da noite anterior, saí do bangalô e cruzei-me com a Solange,
que andava a apanhar cogumelos selvagens (enormes e de sabor muito delicado), e
me interpelou (“Buon dia, Antôniô! Quêrês irr à Canhabaque?”). Com a pouca energia
que tinha, respondi que sim. “Vine!”, rematou. O verbo vir é tramado…
Pouco deois,
felizmente, veio fora o jantar não digerido. Embora continuasse
a sentir-me como uma esfregona em de fim de vida, foi um alívio enorme que me
permitiu viver a aventura que passo a relatar.
À hora estabelecida, saímos de Rubane
(a Solange, a Wal e os 12 estagiários da tabanca que íamos visitar que estão a
trabalhar no “Ponta Anchaca”), com o Kabi e o Agostinho aos comandos do barco.
Depois de cerca de 40 minutos de
viagem, com a perícia do Kabi, entrámos no mangal, percorrendo estreitos canais
até onde a navegabilidade permitiu.
Descalços, saltámos para a água. Mal entrámos
no pântano de água fétida, fomos atacados pela mosquitagem voraz e por uma
espécie de moscardos. Um exército alado que parecia estar à nossa espera,
sobretudo dos brancos…
Entrámos num caminho da floresta,
próprio de uma história de encantar: trepadeiras, frutos silvestres, palmeiras,
cajueiros, mangueiras (disseram-me que há uma espécie selvagem).
No alto das
árvores, como uma orquestra, as aves não se fizeram rogadas a dar corpo à banda
sonora daquele cenário de filme.
Seguimos em fila indiana durante
quase uma hora e, embora tropeçasse aqui e ali, fiz de tripas coração com o
ânimo em alta e a ajuda do Agostinho que fez questão de carregar a minha
bagagem.
Mesmo antes de chegarmos ao destino,
como se estivéssemos numa história de Asterix, duas árvores enormes deixaram-me sem
palavras. Uma espécie de porta de entrada para a tabanca. Não surpreende que Canhabaque seja considerada uma ilha encantada para os animistas, havendo mesmo a crença de que as árvores falam...
Na tabanca, edificada
estrategicamente numa clareira ladeada de centenárias árvores sagradas, fomos
recebidos com entusiasmo e seguidos e interpelados pelas muitas crianças da
comunidade. Tal como na tabanca que visitámos em Bubaque, todos conhecem a
Solange.
As pessoas importantes são enterradas na tabanca.
Num ritmo pastoso, que aqui o tempo
tem todo o tempo do mundo, sobretudo se houver comida para todos, o cenário da
assembleia foi sendo montado: cadeiras para “homens grandes” (ou seja, mais idosos, e a quem
cabe o papel de ouvir as propostas, pedir esclarecimentos e, finalmente, tomar
uma decisão, para a qual não há recurso), para nós e para os homens
ainda não “grandes”, mas na casa dos 40-50 anos. Os restantes participantes tiveram de trazer o seu próprio banco ou
sentar-se no chão.
Finalmente, já com toda a tabanca
reunida (incluindo as crianças, talvez um pouco mais de 100 pessoas), chegaram
os “homens grandes” e, depois de uma sessão de cumprimentos, a assembleia
começou.
Num silêncio absoluto, a Solange
apresentou o seu pedido num circuito comunicativo espantoso: ela falava em francês
(nalguns momentos, em português, com a minha ajuda), o Nautan (funcionário do
hotel) traduzia para crioulo e o Castro (estagiário no hotel e nascido e criado
na tabanca onde estávamos) passava para bijagó. Os “homens grandes” e os que
referi na casa dos 40-50 anos trocavam argumentos em voz bem alta para que todos
ouvissem e iam apresentando contrapropostas ou pedidos de esclarecimento, invertendo-se a ordem das línguas: bijagó-crioulo-francês.
Depois de mais de uma hora de troca
de argumentos, todos se viraram para o homem mais velho da tabanca (até aí em
silêncio e de olhos semicerrados).
Fez-se silêncio...
Passados alguns segundos, fez um breve discurso. Gritou a última palavra e deu
um murro no banco em que estava sentado como se estivesse muito zangado. Não sei reproduzir a
palavra, mas, assim que a pronunciou, toda a aldeia riu e bateu palmas. O Castro
explicou-me que ele disse que estava farto de ser sempre ele a tomar as decisões e
que já era tempo de eles próprios encontrarem o caminho certo. A tal palavra
acompanhada do murro no banco era “merda!”
Depois de nova discussão com vários
intervenientes, foi proposta ao decano uma decisão, tendo sido aprovada. O acampamento podia ser construído, usando como mão de obra os jovens da
aldeia, com entrega à comunidade de um determinado número de sacos de arroz
(base da alimentação nas ilhas e em toda a Guiné). No entanto, a construção
(com caráter provisório, ou seja, de madeira, por ser um espaço sagrado) não poderia
começar de imediato como solicitado, mas apenas daí a duas semanas para
permitir que a comunidade de pescadores da Guiné Conacri lá instalada pudesse transferir-se
para outra parte da ilha, também numa baía, que lhes iria ser cedida.
Depois da maratona, o descanso dos tradutores...
Os "homens grandes". À esquerda, o tal da m...
O Agostinho Quintino (um "homem grande" cheio de sabedoria e sentido de humor) acompanhado por um possível sucessor. Pose, o miúdo já tem!
Quando a assembleia foi encerrada (sendo a ata a memória de todos), despedimo-nos, os “homens grandes”
retiraram-se e iniciámos o regresso até ao barco por um caminho diferente.
Mesmo ensonado,
não deixei de me encantar com as pequenas coisas (como aquela termiteira em forma de cogumelo no início do post) e de começar a organizar a
sequência dos acontecimentos e as emoções para, com as notas que fui registando
num minibloco, escrever este relato.
Após 45 minutos de caminhada, chegámos à praia.
Adeus, Canhabaque...
Mal entrámos no barco, caiu uma chuvada tão forte que nem
tempo houve para vestir os impermeáveis. Com a maré favorável, em cerca de 30
minutos, pusemo-nos em Rubane.
Depois de uma refeição ligeira, caí
na cama e dormi a tarde toda, pois fui dispensado das aulas.
Ao jantar, já estava recuperado e
com apetite. Mas bebida, só mesmo água!
Abraço.
ProfAP
Nota final: A população de Inhodá (como de muitas outras tabancas) vive em condições
deploráveis: sem qualquer apoio de saúde, as pessoas passam suplícios com dores de cabeça ou de dentes, dores incapacitantes de costas, malária, podendo qualquer pequena ferida
passar rapidamente a uma infeção grave. Se juntarmos o alcoolismo (aguardente
de cana, vinha da palma, vinho de caju), potenciado pelas cerimónias,
compreende-se que a morte esteja sempre presente. Morrem muitas crianças, mas não é raro encontrar jovens na casa dos 30 anos já sem um dos pais ou sem o cônjuge.